Num tempo em que a transexualidade é ainda violentada – pelos familiares, políticos, cidadãos e pelos policiais, autoritários e desumanos –, imaginar uma figura que afronte os pilares do sexo e do gênero, na TV, no cinema e na música parece inovador, mas impensável. Não é. Muitos anos antes de panelaços de dondocas, de canarinhos saudosos da repressão e deputados fundamentalistas ignóbeis, muitos anos antes dessa gente careta e covarde, Cláudia já existia. A revolução já aconteceu.
Ela apanhou de policiais, ficou dias na cadeia a mando do pai, tudo por conta de um batom e um vestido. Mesmo assim, não desistiu: tornou-se estrela da cena alternativa paulistana, montando bandas punks, ocupando palcos de teatros importantes e telas do cinema, sendo tema de crônica de um escritor conceituado. Cláudia Wonder, que gritava aos quatro ventos sua condição de travesti, fez o que roqueiros da nova geração, limpinhos e engomados, mal sonham: arte e rebeldia.
Na música, teve principalmente três bandas. As mais emblemáticas foram nos anos 1980, chamadas Jardim das Delícias e Truque Sujo. Com a primeira, é memorável o show O Vômito do Mito que apresentava em clubes importantes da época, como o Madame Satã, banhando-se nua numa banheira de “sangue”. Cláudia destacava-se por fugir dos estereótipos comuns às travestis e transformistas da época, e decidir não ceder mais às dublagens de divas pop e mergulhar no rock e na contracultura, com trabalhos sempre autorais ou de admiradores, como o poeta Glauco Mattoso e o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa.
Só bem mais tarde, Cláudia rendeu-se à música eletrônica, ainda assim alternativa, com o projeto Cláudia Wonder & The Laptop Boys, cujo álbum “funkyDiscoFashion”, de 2007, recebeu prêmio de revelação no programa de Solano Ribeiro, da Rádio Cultura, famoso produtor responsável pelos Festivais de Música Brasileira, que revelou vários nomes ao país, como Elis Regina.
Sim, a revolução já foi feita. Nós no Brasil, já tivemos Cláudia Wonder, que se orgulhava da palavra travesti e de toda a carga que ela trazia. Contestava gêneros, rótulos, caretices de quem fosse. Assumia-se homem e mulher, porque não abria mão de ser tudo. Cláudia é punk, underground, artista. Um documentário sobre sua vida, Meu amigo Cláudia, pode ser visto na íntegra no Youtube. O título, aliás, vem de uma crônica sobre ela escrita por Caio Fernando Abreu. Porque os dignos se atraem:
"Meu amigo Cláudia é uma das pessoas mais dignas que conheço. E aqui preciso deter-me um pouco para explicar o que significa, para mim, “digno” ou “dignidade”. Nem é tão complicado: dignidade acontece quando se é inteiro. Mas o que quer dizer ser “inteiro”? Talvez, quando se faz exatamente o que se quer fazer, do jeito que se quer fazer, da melhor maneira possível. A opinião alheia, então, torna-se detalhe desimportante. O que pode resultar – e geralmente resulta mesmo – numa enorme solidão. Dignidade é quando a solidão de ter escolhido ser, tão exatamente quanto possível, aquilo que se é dói muito menos do que ter escolhido a falsa não-solidão de ser o que não se é, apenas para não sofrer a rejeição tristíssima dos outros."
(Caio F. Abreu)