Ele não interrompeu a carreira mesmo enquanto sua imagem ficava cada vez mais fragilizada, e gravou seu último disco (duplo) em uma cadeira de rodas. Ele entrou para uma banda de rock, saiu dela para ampliar suas possibilidades sonoras, foi regravado logo no início da carreira por figurões da música, colocou temas como homossexualidade e aids em evidência e se tornou das maiores catástrofes de sua geração. Em menos de dez anos.
“Burguesia”, último álbum de estúdio de Cazuza, chega a ser emblemático. O cantor estava debilitado, cantou algumas faixas deitado de tão fraco, outras numa cadeira de rodas. Ainda assim produziu um álbum não apenas duplo no sentido físico, com dois discos, mas também conceitualmente. O primeiro álbum é de rock, o segundo de MPB. Cazuza expunha mais uma vez que gêneros eram prisões que ele não aceitava. Que ele queria o vigor frenético da guitarra e a poesia bucólica do violão, tudo junto e quase misturado.
Não há nenhum grande sucesso em “Burguesia”. Nada ao menos comparado com seus dois álbuns anteriores, “Ideologia” e “O Tempo Não Para”, cujos títulos já dispensam apresentações. Entretanto há alguns momentos interessantes, como a versão de “Preconceito”, sucesso de Nora Ney nos anos 50 e que ganha um tom especial numa voz masculina (Por que você me olha com esses olhos de loucura, por que você diz meu nome, por que você procura? Se as nossas vidas juntas vão ter sempre um triste fim, se existe um preconceito muito forte separando você de mim?).
Há também a bela (e sua) “Como já dizia Djavan”: E as estrelas ainda vão nos mostrar que o amor não é inviável. Num mundo inacreditável, dois homens apaixonados. A canção é de uma de suas poucas a abordar de maneira mais clara o amor gay. Antes disso, pouco além de insinuações e ironias. Como no álbum “Só se for a dois”, que traz “Heavy love” e os versos Pro nosso amor descarado e virado o mundo lá fora não vale pra nada; “Quarta-feira”: Eu ando apaixonado por cachorros e bichas, duques e xerifes, porque eles sabem que amar é abanar o rabo, lamber e dar a pata; e “Culpa de Estimação”: Por onde eu ando levo ao meu lado minha namorada cheirosa e bem tratada. Não sei se o nome dela é Eva ou Adão.
Na época do Barão Vermelho, escreveu sutilezas ainda maiores, como “Narciso” (Eu tenho tudo que você precisa e mais um pouco. Nós somos iguais na alma e no corpo), e a enigmática “Por que a gente é assim?”, que segundo o amigo e coautor Ezequiel Neves, trazia uma piada interna sobre homossexuais nos versos Você tem exatamente três mil horas pra parar de me beijar, que teria feito com que o restante do Barão até tivesse resistido em gravar a música (!).
Cazuza não era fácil nem óbvio. Era um roqueiro com os dois pés na bossa nova, o que fazia alguns narizes se torcerem. Nascido também em meio à dondoquice carioca, com pai influente e uma carreira construída em meio a amigos da televisão, ele poderia ter sido uma celebridade pop com um ou dois hits presentes em alguma antologia do trash dos anos 80, mas ganhou a alcunha de poeta e trouxe tanto festa quanto acidez às letras do rock brasileiro. Cantou a política, o amor e a bagunça, de um jeito considerado maduro demais para um jovem mimado e burguês.
Mimado... até vai. Burguês, depende. Em dias ainda menos amigáveis que os de hoje, admitiu publicamente uma doença vinculada a um comportamento “imoral”, que expôs sua vida íntima e sua vulnerabilidade. Subiu ao palco magro, abatido, numa atitude poucas vezes vista mundo afora. Difícil (e cruel seria) não se impressionar com a força que o rock alcançou naquele momento.