"Se algum de vocês, de alguma maneira, odeia homossexuais, pessoas de cores diferentes, ou mulheres, faça a porra de um favor para nós: deixe-nos sozinhos! Não venha a nossos shows nem compre nossos discos."
O apelo acima fez parte de uma carta escrita por Kurt Cobain e publicada nas páginas extras da primeira versão americana do encarte do álbum Incesticide, de 1992, uma coletânea de “lados B” do Nirvana. A carta, retirada das edições posteriores e estrangeiras, era mais um desabafo de Kurt sobre o sucesso que fazia e suas consequências, boas e ruins – entre estas, o preconceito contra sua mulher, Courtney Love (“insubordinada” e “desafiadora”, o que assustava os homens machistas) e o tipo de público que a popularidade comercial lhe rendia: naquela época, uma mulher foi estuprada por homens que, durante o ato, cantavam a sua música Polly.
A carta demonstra principalmente duas coisas: a indignação de Kurt com os preconceitos e seu desconforto com o sucesso. A coletânea foi lançada um tempo depois de Nevermind, o álbum que tornou o Nirvana enorme no cenário do rock mundial. A popularidade passou a preocupar Kurt que, mesmo achando óbvia sua posição contra a homofobia, o sexismo e o racismo, percebeu que o sucesso de Smells Like Teen Spirit lhe trouxe um público que achava que eles fossem “como o Guns and Roses”.
Sua opinião sobre a banda de Axl resultou, aliás, numa rivalidade que se tornou das mais famosas da música. Kurt, que além de tudo representava um novo tipo de rock, se indignava com o que percebia de Axl, o seu machismo, seus preconceitos, expressos inclusive em canções como One in a Million, na qual imigrantes e gays eram xingados, e fazia provocações públicas contra a banda que acreditava ser bem escrota. Kurt não conseguia entender como o Guns poderia ser a maior banda de rock do seu tempo. “É insano”, dizia.
Ao fã que quis pôr panos quentes e dizer que ambas as bandas tinham o seu valor, Kurt foi enfático:
“Não, garoto, você está realmente errado. Aqueles caras são uns completos idiotas sexistas, e a razão por que tocamos nesse show [No on 9, em Portland, evento em prol de direitos gays em 1992] é para fazer nossa pequena parte e combater a homofobia. Aquele cara [Axl] é um merda de um sexista, racista e homofóbico, e você não pode estar do lado dele e do nosso lado. Desculpe ter que dividir as coisas assim, mas é algo que você não pode ignorar. Além do mais, eles não conseguem fazer música boa.”
Kurt teve uma "ligação" com os homossexuais que começou cedo. Nos tempos de escola, costumava sofrer bullying pela sua personalidade e era tachado de esquisito e gay. Passou a adolescência sendo considerado dessa maneira e chegou ao ponto de realmente desejar ser gay só para afrontar os outros. Com isso, chegou a fazer amigos gays de verdade, com quem acredita ter aprendido muito, até por causa de sua “associação com eles”. Em entrevista à revista Advocate, chegou a dizer:
“Eu definitivamente tenho um espírito gay, e eu provavelmente poderia ser bissexual. Mas sou casado, e tão atraído por Courtney como jamais fui por alguém, então nem dá para tentar alimentar esse meu lado agora. Se eu não tivesse conhecido a Courtney, provavelmente teria uma vida bissexual”.
Gay e estranho. Alcunhas que sempre o acompanharam moldaram sua personalidade artística também. Kurt gostava de se sentir “anticomercial” e o sucesso de Nevermind o incomodou bastante. Não apenas pelo som, mas porque alcançaria pessoas que não costumam absorver a proposta do artista, mas apenas “consumir” a música. Isto o fez querer tentar mudar radicalmente, abandonar o aspecto radiofônico obtido com Nevermind, voltar um tanto ao estilo do primeiro álbum, Bleach, e ser quem realmente sentia que era: um cara estranho e nada popular. Contratou um produtor para conceber In Utero, mas depois voltou atrás e contratou outro, para “amenizar” certas faixas, como o single Heart Shaped Box. Ainda assim, a preocupação da gravadora persistia, e o álbum era considerado um “suicídio comercial”.
No fim, nem tanto. In Utero alcançou o primeiro lugar da parada Billboard 200 e foi aclamado pela crítica. Mas o desconforto continuou, e meses depois do lançamento do álbum, com menos de dez anos de carreira e apenas três CDs lançados, Kurt foi encontrado morto. Especulações sobre as letras de In Utero começaram a surgir, mesmo que Kurt já tivesse dito que muitas eram mais antigas que seus problemas pessoais e que no mais das vezes suas letras não tinham muita importância, porque serviam apenas para preencher a música, essa sim que ele gostava de compor.
Há 20 anos In Utero foi lançado. Há exatos 13 de setembro de 1993. Ano que vem, sua morte é que completa 20 anos. Mas talvez o que seja mais importante lembrar é do seu desassossego como artista e de sua tentativa de não ser um qualquer, um bonitinho, um astro, um grande nome tosco do rock.
Kurt se enxergava pequeno, com muitos defeitos, não achava espaço para si mesmo dentro da enormidade em que se tornou. O que completa 20 anos não é apenas um álbum (que não esqueçamos começou a ser composto no Brasil, durante turnê da banda), mas a sua vontade, o seu olhar sobre o mundo, o seu sentimento, e, por que não dizer, o espírito de uma geração que talvez tenha sido a última a ser traduzida por um tipo de música relevante.
Olhando para sua história, chegamos até a entender por que sua mulher, Courtney Love, que declara ser a herdeira mais pobre de sua obra, hesita tanto em ceder os direitos autorais das canções para qualquer iniciativa que apareça, provocando a ira de todos os outros envolvidos. Dave Grohl, antagonista de Courtney e parceiro de banda do Kurt, acaba por parecer o grande empresário, a nos lembrar a todo custo e com os mais variados projetos a grande estrela que o Nirvana era.
De um lado, a continuidade do acesso ao legado do Nirvana ao grande público, mesmo que em trilhas de séries desconexas, comédias adolescentes, musicais da Broadway ou propagandas de refrigerantes. De outro o respeito à personalidade introspectiva (ou talvez apenas insegura) de Kurt. Mas se Bleach, Nevermind e In Utero já estão aí... Para que mais?