Quem acompanha este site sabe que o queer rock é um de seus temas recorrentes. Muito já se falou a respeito e muitos nomes já foram citados, desde aqueles que se assumiram gays durante a carreira, como Rob Halford, até os que fizeram da diversidade sexual e da anti-homofobia uma bandeira, como o pessoal do Limp Wrist e do Teu Pai Já Sabe?. Mas o que faltava era conversar com alguém que tivesse visto nascer o movimento queer dentro do rock, sobretudo do punk, que mais espaço abriu aos gays na cena roqueira. Principalmente: conversar com quem protagonizou, segundo suas próprias palavras, o início do queercore, liderando a banda que primeiro abordou a homossexualidade em suas canções.
Gary Floyd, eterno vocalista da lendária banda The Dicks, bateu um papo conosco, e nos contou um pouco sobre sua trajetória na música, suas opiniões e sua postura de vida. No mês do Orgulho Gay, conta como era ser gay entre os punks, e como era ser punk (e gordo) entre os gays. Defende a importância do ativismo, mas alerta que a causa gay não é a única com o que os gays devem se preocupar. Confiram, com amor.
CDOROCK - Você se considera o pioneiro do queercore?
GARY - Eu era assumido quando eu comecei a The Dicks. Eu não tinha medo nem vergonha de ser assumido e gay, e tinha orgulho disso. Eu não era o único, mas não havia muitos assim. Alguns de grandes bandas que são assumidos hoje estavam no armário naquela época, e se assumiram muito mais tarde. Em Austin, era Biscuit, da Big Boys, e eu. Tínhamos boas bandas e falávamos a quem quisesse ouvir: “Estamos aqui. O que você vê é a verdade e não temos medo! Se você não gosta de nós, então saia do nosso caminho, porque nós não vamos a lugar nenhum!” Creio que é verdade que eu seja o pioneiro.
CDOROCK - Como percebia a reação do público quando abordava a homossexualidade em seus shows com o The Dicks?
GARY - Austin tinha um tanto de gente muito progressista e a cena punk foi muito receptiva a mim e às coisas que eu dizia. Minha conduta política era ainda mais chocante para a época do que eram apenas as causas gays... The Dicks era muito esquerdista... Sempre agindo em prol das causas esquerdistas... Tivemos uma reputação de bichas comunistas... E assim foi! Eu senti que o público gostava de nós e nos abraçou... E eu a ele!
CDOROCK - É verdade que o público gay é muito mais preconceituoso com uma banda de hardcore do que o público de hardcore é com uma banda gay?
GARY - Depende de onde você está. Certamente não muitos gays iam nos shows naquela época... A maioria estava nos clubes dançando noite fora. Quando eu ia para os bares gays, eles me odiavam por causa do meu cabelo e porque eu era gordo... Não havia qualquer movimento urso naqueles dias – lentamente isso começou a surgir por aí. No entanto, por esse tempo, eu me mudei para São Francisco. Os queers estavam por toda parte... Na cena punk e em todo lugar... Eu encontrei um verdadeiro lar aqui.
CDOROCK - O que o motivou a começar a inserir o tema do preconceito e da homossexualidade em suas canções?
GARY - Minha vida. Eu escrevo o que eu sei... e sobre algumas cacetadas da vida. Eu acho que as pessoas pobres são ensinadas a odiar outras pessoas pobres, sejam elas gays ou negras ou mulatas ou o que forem. O interesse dos ricos é mais bem servido quando as pessoas das classes mais baixas estão nos pescoços umas das outras. Se elas se unissem... bem... isso seria o fim de uma sociedade de classes. Eu escrevo sobre as coisas que eu ouvi e que me fazem reagir.... Black Kali Ma (uma das minhas bandas) gravou uma música sobre um homem negro morto no Texas e um jovem gay assassinado em Wyomming... Ambos são vítimas do mesmo ódio. Eu tive de escrever sobre isso... A música se chama Moving On.
CDOROCK - Acha que a cena queercore atual é menor do que a de uns anos atrás?
GARY - Eu devo ser honesto e dizer que eu não tenho ideia. Eu vejo um monte de pessoas vestidas como punks, com moicanos, mas se você perguntar a respeito, dizem que é só pela moda. Elas não têm ideia da história do movimento ou, vai ver, se importam mesmo com a música... Então eu não sei.
CDOROCK - Uma arte queer pode ser importante ainda hoje em dia?
GARY - Sim. Oh sim... Toda a arte feita do coração é importante. Eu vejo um monte de arte de rua em São Francisco que é queer na essência. A arte de rua é ótima... se for feita com um propósito e honestidade. Temos de ficar tranquilos e manter nossa arte viva. Eu vejo o queer punk mais vivo nas ruas que na música... Mas que diabos eu sei?
CDOROCK - Você e o The Dicks são referências para muitos artistas queer. E quem é o seu ídolo queer?
GARY - Na verdade eu não tenho nenhum... Eu amo muitos e não idolatro nenhum.
CDOROCK - E que artista não gay foi mais importante para o movimento gay, na sua opinião?
GARY - Bem... David Bowie é gay? Ou Lou Reed, Iggy... Eles pareciam gays, mas todos se casaram com mulheres e parecem héteros agora. Eles tiveram uma influência profunda sobre mim – um jovem roqueiro gay de uma banda emergente. Eu lembro de ter ouvido Ziggy Stardust em 1972. Eu tinha acabado de sair de casa e fiquei emocionado ao deixar isso tocando alto e fazer meus amigos héteros ouvirem. Mott the Hoople foi ótimo, muito bom... Todas as músicas de temática gay. Joan Jett veio logo depois... grande artista! Eu gostava dessas pessoas.
CDOROCK - Talvez a última grande notícia da cena queer rock foi a da readequação sexual de Tom Gabel, da banda Against Me. Que consequência essa notícia pode ter no rock e na música em geral?
GARY - Causou alguma coisa? Talvez por alguns segundos. Para a vida pessoal dele/a é algo muito importante e continuará sendo... Mas para a cena em geral, provavelmente não.
CDOROCK - Recentemente, Obama deu declarações favoráveis à comunidade homossexual. Que importância isso terá nas próximas eleições e o que isso representa, na prática, para a sociedade?
GARY - Talvez alguma importância. Heterossexuais não são afetados pelo que acontece com gays. Eles ficam muito bem se continuamos no escuro e aparecer apenas entretê-los, cortar seus cabelos, construir suas referências de moda. Nossos direitos civis de nenhuma maneira os afeta. Então quando fazem algo por nós devemos reconhecê-los como verdadeiros amigos. A maioria deles realmente não dá merda nenhuma por nós. Somos o último grupo que pode ser ferrado, odiado, ter seus direitos negados, que os héteros não são atingidos. Caras héteros e “machos” realmente podem não ficar mais impunes se forem abertamente antinegros, ou antilatinos (e são), mas eles podem odiar e falar mal de gays o quanto quiserem, que quem se importa? Outras minorias também podem nos odiar e isso se tornar extraordinário para os homofóbicos, quando na verdade eles se odeiam também. Acho que o presidente está tentando apoiar o casamento gay, mas isso vai lhe custar muito e a Direita certamente usará isso contra ele.
CDOROCK -Você ficou famoso por sua militância contra Ronald Reagan. Que político atual considera mais danoso para o seu país ou para o mundo?
GARY - Ninguém é realmente confiável. Isto é um fato. Devemos optar pelo menor dos males quando podemos escolher. A Direita, os religiosos republicanos são um grande perigo para cada um de nós e também para o mundo. São loucos vomitando saquinhos de chá, que não veriam nenhum problema em nos exilar em campos, prisões ou hospitais psiquiátricos. Isto não é brincadeira. Por isso precisamos apoiar a Esquerda ou democratas que parecem ser melhor para nós e apoiar nosso direito de casar, ter filhos e dar aulas nas escolas - tudo que os republicanos e a Direita do chá de bebê não apoiam. Mas precisamos escolher nossas lutas com cuidado: não apenas direitos gays, mas também dos pobres e mulheres. Muita gente é fascista e racista e deve ser tratada como as cobras que eles são. Por isso devemos também manter o olho aberto para os democratas. Mesmo que pareçam nossos amigos, sejamos cuidadosos.
CDOROCK - No Brasil, políticos são coagidos por grupos de religiosos para se posicionarem contra homossexuais em troca de votos, o que gera sempre muita polêmica. Isto também acontece nos Estados Unidos?
GARY - Pode apostar que sim. Todos os dias nós vemos que a linha divisória entre igreja e Estado está desaparecendo, e isto é exatamente o que a Direita quer. Eles acabariam com a lei que separa essas coisas se eles pudessem. Os líderes religiosos pregam em seus púlpitos contra os direitos de escolha dos gays e das mulheres... Eles estão infringindo as leis com isso, mas ninguém os impede. Está ficando cada vez pior, e muitos deles odeiam Obama porque são uns porcos racistas!
CDOROCK - No Brasil, também se discute muito a importância da Parada Gay. Alguns argumentam que ela não é um manifestação política e tem influência negativa para a causa dos direitos gays. Tem opinião formada sobre isso?
GARY - A Parada Gay aqui em São Francisco é uma grande diversão, e é muito politizada. Muitos dos democratas no poder vêm à Parada, assim como milhões de pessoas também vêm e se divertem. Os participantes nus e vulgares causam mais mal do que bem, eu acho. Houve um tempo em que havia lugar pra isso, mas hoje é só o que a imprensa quer noticiar: alguns caras de pau duro e perucas passando pela avenida. Mas eu tenho um monte de amigos gays que me acham chato e discordam de mim. Muitas crianças estão assistindo e não acho que um monte de paus e bundas nos fará parecer pessoas que possam ter liberdade sexual. Às vezes tudo bem, mas o tempo todo, por favor!
CDOROCK - Atualmente, você está com a banda Buddha Brothers. Ela também é queer?
GARY - Ninguém ali é gay, além de mim. No entanto, quando eu escrevo e preciso fazer referência a um gênero, eu uso o masculino, quando se trata de um amante. Eu não minto em minhas músicas. Deste modo, nada na banda é queer, exceto o fato de eu escrever todas as letras e geralmente ser o porta-voz da banda. [risos]
CDOROCK - Sei que sua arte vai além da música, poderia falar um pouco mais sobre isso?
GARY - Arte, pintura, desenho são coisas que sempre fiz. Vejo muita temática sexual nas pinturas que tenho feito. Não censuro minhas coisas e só parece funcionar dessa maneira. Penso que minha arte é mais uma afirmação do punk que minha música atualmente. Eu tenho centenas de peças de arte, escondidas em armários e malas por toda a casa. Aquarelas em sua maioria, autorretratos e coisas sujas e adultas. Paus na Parada Gay estão fora das minhas metas, mas nunca das minhas pinturas.
CDOROCK - Nosso site costuma falar a respeito dos símbolos sexuais do rock and roll. Quem, na sua opinião, é o cara mais gostoso do rock?
GARY - Eu (um cara mais velho, barbudo e gordo, por que não?)
CDOROCK - Conhece o Brasil? Alguma chance de tê-lo por aqui?
GARY - Nunca fui aí, mas adoraria ir e tocar música e conhecer pessoas. Amigos foram e adoraram, querem sempre voltar. Devo dizer que tenho visto algumas pessoas extremamente atraentes daí. Caras doces, barbudos e parrudos. São meus preferidos. Eu deveria ser um comunista, mas eu sou um bom hindu-budista que realmente quer ser sua mãe.