Nossas meninas estão longe daqui
Não temos com quem chorar e nem pra onde ir
Se lembra quando era só brincadeira?
Fingir ser soldado a tarde inteira?
Mas agora a coragem que temos no coração
Parece medo da morte, mas não era então
Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto
Tenho medo e eu sei por quê:
Estamos esperando.
Quem é o inimigo?
Quem é você?
Nos defendemos tanto, tanto sem saber
Por que lutar.
Nossas meninas estão longe daqui
E de repente eu vi você cair
Não sei armar o que eu senti
Não sei dizer que vi você ali.
Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis?
Somos soldados
Pedindo esmola.
E a gente não queria lutar.
A letra acima é da música Soldados, do primeiro álbum da Legião Urbana, de 1985. Já foi lida de muitas maneiras, inclusive como uma manifesto antimilitarista, ou comunista, qualquer coisa do tipo. O “sutil” significado de sua letra só foi mesmo confirmado um tanto depois de seu lançamento quando, em entrevista, Renato Russo observou a um jornalista que qualquer pessoa “com um mínimo de sensibilidade” saberia do que se tratava a canção. O jornalista discordou da suposta obviedade semântica, mas a mensagem estava confirmada.
Soldados mostra a relação de dois garotos na ausência de suas namoradas, e o tormento pelas sensações que surgem. “Como explicar pra você o que eu quis?” é o ápice da obviedade a que se referiu Renato. No entanto não é apenas a abordagem do tema da “descoberta da homossexualidade” que torna a canção especial na nossa música, nem apenas o fato de ela surgir logo no primeiro álbum de uma banda de uma grande gravadora. A forma como se conduziu o tema, a força das imagens, isto sim é um marco, de sensibilidade e poesia.
“Somos soldados pedindo esmola” — há uma enorme carga de significados aí e considero o verso como um dos mais representativos da condição emocional e social dos homossexuais nos nossos tempos. Um soldado que pede esmola... Um indivíduo que luta, guerreia contra si mesmo ou contra os outros, que implora pelo básico à sua sobrevivência, à sua dignidade: respeito, igualdade, quem sabe apenas a indiferença, o direito e espaço para ser comum, simples, como todo mundo é. Nada demais, nada merecedor de tanta atenção. Esse pouco que liberta.
Ao mesmo tempo o verso nos evoca a imagem de um herói em estado de abandono, um herói subjulgado. Amantes condenados por causa do mais nobre dos sentimentos. Algumas possibilidades, todas enormes. Uma grande canção.
Uma versão, mais explícita ainda (desculpem a redundância), surgiu no Música para Acampamentos (1992), uma coletânea dupla de músicas e versões inéditas. Lá Soldados surge com quase oito minutos de duração, introdução de Blues da Piedade e Faz Parte do Meu Show, de Cazuza, e intervenção de Nascente, de Flávio Venturini:
Clareia manhã
O sol vai esconder
a clara estrela
ardente
pérola do céu
refletindo
teus olhos
A luz do dia a contemplar
teu corpo
sedento
louco de prazer
e desejos
ardentes
A versão nos deixa ainda mais confortáveis com a mensagem que Renato quis passar. E é belíssima, um achado, ainda mais se tratando de um “não hit”. Por si só já valeria para termos Renato Russo, e mesmo a Legião Urbana, como nome importantíssimo de nossa cultura queer.
Não é, entretanto, a única canção a levar a casa de milhões de brasileiros o amor e a angústia gay. No álbum seguinte, Dois (1986), já surgia Daniel Na Cova Dos Leões e o célebre verso “teu corpo é meu espelho e em ti navego”, e em 1989 o supersucesso Meninos e Meninas, de As Quatro Estações, invadia nossas rádios. Isto para ficarmos nas mais conhecidas. Outras menos populares e bem menos claras, com alguns elementos autobiográficos inclusive, sempre apareciam. “Mauricio”, “Leila”, e a póstuma “Dado Viciado”, sobre o primo com quem Renato teve sua primeira experiência homossexual, entre elas.
Destaque merece também o primeiro cd solo de Renato, The Stonewall Celebration Concert (1994), que já pelo título expunha sua proposta. Época em que o carioca quase brasiliense já se sentia bem mais à vontade para conversar sobre sua vida íntima. O álbum trazia duas grandes distinções: canções em inglês e não compostas por Renato, para impor um distanciamento maior do trabalho da Legião e evitar comparações. O disco passou despercebido pela mídia, principalmente pela coincidência de Zélia Duncan surgir com um sucesso em comum, Catedral. Ainda assim o disco foi reconhecido como o melhor naquele ano. Trazia canções de toda sorte, clássicos do cinema, da música americana e da música pop (como a curiosa cover de Cherish, da Madonna). Sem dúvida alguma o grande destaque vai para If You See Him Say Hello, versão “desviada” de Bob Dylan, na qual Renato adaptou os pronomes e considerou essa liberdade como prova do grande momento que vivia com sua sexualidade.
Eu me lembro até hoje quando folheava o encarte desse cd e, do alto dos meus impúberes onze, doze anos, me perturbava tanto pela imagem de um Jesus Cristo sob uma palheta a ostentar um triângulo cor-de-rosa, bem onde estava seu sagrado coração (fiz uma camiseta dessa imagem!), quanto pela capa de uma revista Mandate também ali exposta...
Curioso que eu nunca tenha escrito sobre Renato Russo. Talvez eu cedesse à pressão de achar seu nome lugar-comum demais. Mas seria tanta injustiça não homenageá-lo aqui! Aproveito a data de 15 anos de sua morte para preencher essa lacuna.
Explicar mais quem é Renato é dispensável. O primeiro álbum da Legião já foi considerado, sem exageros, como o disco mais influente do rock brasileiro, devido às inúmeras cópias da banda que surgiram desde então. Uma banda que conquistou tantos fãs quanto perseguidores. Minto: conquistou mais fãs, mas os eternos adolescentes a cantarolar suas melodias em rodas de violão e os eternos adolescentes a considerar Renato Russo como uma espécie de gênio ou missionário, ou apenas grande artista, e poeta, causam nos amargos uma ojeriza poucas vezes vista.
Usam ainda os argumentos de que Legião é uma banda musicalmente fraca. Que o forte, quando muito, seriam apenas a voz e as letras de Renato. Ora, quase todo o nosso rock comercial da década de 1980 era musicalmente fraco, e a isso o líder da banda respondia lembrando que a Legião era essencialmente punk, com toda a crueza de recursos que o termo levanta. Ele também lembrava debochado um detalhe crucial: todo álbum da Legião Urbana possui clássicos. Fato.
O tamanho de Renato, e da Legião, sempre resultou muito falatório, o que, de certo modo, prova o que os não simpatizantes tanto tentam negar.